Carl Jung e o homem-criança - Parte III
Como amadurecer psicologicamente - O valor do trabalho e como encontrar um propósito - Sinais de que você está em um relacionamento com um homem-criança
“Não podemos dominar tudo, saborear tudo, compreender tudo, drenar cada experiência até suas últimas gotas. Mas se tivermos a coragem de abrir mão de quase todo o resto, provavelmente conseguiremos manter a única coisa necessária para nós - seja ela qual for. Se estivermos muito ansiosos para ter tudo, é quase certo que perderemos até mesmo a única coisa de que precisamos.”
— Thomas Merton, No Man is an Island
No primeiro ensaio desta série, examinamos as condições familiares e culturais que deram origem ao problema do puer aeternus, ou seja, do indivíduo que permanece preso em um nível adolescente de desenvolvimento psicológico. Discutimos dois fatores principais que podem explicar por que tantos indivíduos sofrem com esse problema: o primeiro é que vivemos na “época do pai física ou emocionalmente ausente” e o segundo é que não temos nenhum rito iniciático significativo de passagem para a vida adulta psicológica.
No último ensaio da série, examinaremos como o puer pode instigar seu próprio rito de passagem iniciático para se tornar um adulto mais responsável, bem-sucedido e independente. Para fornecer o contexto apropriado para esse conselho, precisamos primeiro discutir os pensamentos de Jung sobre os estágios da vida, particularmente sobre o período de transição que ocorre entre a adolescência e a idade adulta, que é o estágio em que o puer fica preso.
Jung dividiu a vida humana em quatro estágios, sendo o primeiro o da infância.
“No estágio infantil da consciência ainda não há problemas”.
— Carl Jung, The Stages of Life, Collected Works Volume 8
Essa ausência de problemas não significa que a criança esteja sempre feliz. Em vez disso, significa que ela não tem conflitos internos. A criança é movida apenas por seus instintos inconscientes e, portanto, nas palavras de Jung, ela está "submersa na natureza". Ao contrário do adulto, a criança não tem a capacidade de duvidar de si mesma ou de questionar suas motivações, emoções, ações e desejos. A falta desse conflito interno é o motivo pelo qual o estágio de consciência da infância tem sido descrito culturalmente como paradisíaco.
O início da adolescência marca o fim do estágio infantil da vida e o início do que Jung chama de estágio da juventude. Durante a adolescência, as mudanças biológicas no corpo são acompanhadas por mudanças igualmente dramáticas na psique. O ego - o centro de controle consciente da psique - se fortalece pela primeira vez, criando assim uma fenda entre as camadas consciente e inconsciente. Enquanto a criança estava submersa no paraíso do inconsciente, o ego consciente recém-formado do adolescente tenta assumir o controle da psique e determinar suas atividades. Entretanto, para o adolescente, o ego consciente é fraco e semelhante a uma pequena ilha no vasto oceano do inconsciente. Assim, seu “domínio” é, na melhor das hipóteses, instável e, muitas vezes, suplantado por impulsos inconscientes que frequentemente sobrepujam as intenções do ego consciente.
“O ego diz ‘eu quero’, o eu [inconsciente] diz ‘tu deverás’.”
— Carl Jung, Zaratustra de Nietzsche
Esse antagonismo entre as intenções conscientes do adolescente e seus impulsos e instintos inconscientes manifesta dúvida, hesitação, confusão e, muitas vezes, intenso conflito interno. Os ritos iniciáticos das culturas passadas ajudavam o adolescente nesse estágio turbulento de desenvolvimento, mas, nos dias de hoje, a maioria dos jovens é deixada à própria sorte para lidar com esse conflito. Sem essa orientação, o indivíduo terá dificuldades para superar esse estágio de desenvolvimento e, em vez disso, reagirá de forma regressiva. Passará um tempo excessivo ruminando o caos interior, o que, como observa Jung, não o ajuda a resolver seus conflitos internos, mas apenas o torna estagnado e corre o risco de progredir fisicamente para a vida adulta com a mente de um adolescente e o comportamento de uma criança.
O puer precisa superar o conflito interno que ainda o assola e a melhor maneira de fazer isso é conduzir seu próprio rito de passagem para a vida adulta psicológica. De acordo com Jung, a melhor maneira de fazer isso é por meio do trabalho. O fato de se comprometer com uma forma de trabalho não apenas promoverá a independência financeira e psicológica dos pais, mas também proporcionará ao puer uma âncora no mundo externo à qual ele poderá se agarrar para enfrentar as tempestades internas. Como explica Jung:
“Realização, utilidade e assim por diante são os ideais que parecem indicar o caminho para sair das confusões do estado problemático. Eles são os pilares que nos guiam na aventura de ampliar e consolidar nossa existência física; eles nos ajudam a fincar nossas raízes no mundo... No período da juventude... esse curso é o normal e, em todas as circunstâncias, preferível a simplesmente se jogar em um turbilhão de problemas...”
— Carl Jung, The Stages of Life, Collected Works Volume 8
Em um de seus discursos sobre o problema do puer aeternus, Marie-Louise von Franz relembra as palavras de Jung para um homem que estava lutando com este problema.
“Não importa o emprego que você tenha”, aconselhou Jung. “O importante é que, pelo menos uma vez, você faça algo completa e conscientemente, seja o que for.”
— Marie-Louise von Franz, The Problem of the Puer Aeternus
O homem respondeu - de uma forma tipicamente puer - observando que gostaria de trabalhar, se ao menos pudesse encontrar algo que gostasse de fazer. Jung respondeu:
“Não importa, pegue o próximo pedaço de terra que você encontrar. Faça um planejamento e plante algo nele. Não importa se é trabalho, ensino ou qualquer outra coisa, entregue-se de uma vez ao campo que está à sua frente.”
— Marie-Louis von Franz, The Problem of the Puer Aeternus
O conselho de Jung é útil para o puer que não tem consciência da forma de trabalho com a qual gostaria de se comprometer. Qualquer forma de trabalho produtivo, desde que a pessoa se comprometa de todo o coração com ele, pode servir como um rito iniciático de passagem para a vida adulta psicológica. Entretanto, von Franz acrescenta uma importante ressalva a esse conselho. A maioria das pessoas tem interesses e inclinações para determinados campos e formas de trabalho; lugares para os quais sua energia psicológica flui naturalmente. Portanto, sempre que possível, é preferível que o puer ouça o conselho de Joseph Campbell e “siga sua felicidade”, ou seja, encontre um chamado ou vocação. Como von Franz observa:
“Isso não é tão difícil quanto trabalhar completamente contra o seu próprio fluxo de energia.”
— Marie-Louise von Franz, The Problem of the Puer Aeternus
Mas, com esse conselho, surge uma pergunta importante: como encontrar uma vocação?
“Todo homem tem uma vocação para ser alguém: mas ele deve entender claramente que, para preencher essa vocação, ele só pode ser uma pessoa: ele mesmo.”
— Thomas Merton, No Man is an Island
Como Merton ressalta, a vocação de cada indivíduo é singular e depende de seus interesses e de sua singularidade como indivíduo. Sendo assim, não há roteiros concretos para encontrá-la. Entretanto, ao longo da história, muitos dos maiores pensadores refletiram sobre como encontraram a vocação de suas vidas, e um tema recorrente foi o que o escritor Stefan Zweig chamou de “luta com o daimon”.
Inúmeros indivíduos criativos relataram que uma voz ou força interior - um daimon - os acompanhou durante toda a vida, fornecendo-lhes orientação sobre como realizar seu potencial. Diz-se que Sócrates ouviu uma voz dos deuses falar com ele sempre que uma decisão crucial estava diante dele, dizendo-lhe o que evitar. Goethe relatou a presença de um daimon que o compeliu a cumprir seu destino como cientista, poeta e artista. Carl Jung, olhando para trás em sua vida e realizações, escreveu:
“Havia um daimon em mim e, no final, sua presença foi decisiva.”
— Carl Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões
Embora no passado alguns explicassem a presença de uma voz interior invocando os deuses ou espíritos, como Robert Greene argumenta em seu livro "Mastery", o daimon pode ser explicado em termos naturalistas. Nascemos únicos - um fenômeno único do universo - e parece que em nosso nascimento existe dentro de nós uma semente de singularidade que quer crescer, transformar-se e florescer em todo o seu potencial. O daimon pode ser visto como uma força psicológica inconsciente - um impulso inato de crescimento - cujo objetivo é nutrir essa semente. E a maneira como ele faz isso é nos guiando na direção de uma vocação mais adequada aos nossos talentos, interesses e individualidade inatos. Não é coincidência o fato de o significado latino da palavra vocação ser “ser chamado”, pois é o daimon que nos chama das profundezas do nosso inconsciente, incitando-nos a buscar a tarefa de nossa vida.
Porém, a maioria das pessoas tem medo de buscar uma vocação, pois, ao fazê-lo, precisam expressar sua singularidade e, assim, tornam-se vulneráveis a insultos e ao ridículo. Assim, a maioria reprime seu daimon e, ao determinar um caminho de vida, não presta atenção em sua própria bússola interna. Em vez disso, tendem a dar a maior importância ao que os outros consideram desejável e, assim, sucumbem às pressões sociais para se conformar.
Ao se conformar com as normas sociais, você ouvirá mais os outros do que a sua própria voz. Você pode escolher uma carreira com base no que os colegas e os pais lhe dizem ou no que parece lucrativo. Se você perder o contato com esse chamado interior, poderá ter algum sucesso na vida, mas, por fim, a falta de desejo verdadeiro o alcançará. Seu trabalho se torna mecânico. Você passa a viver para o lazer e os prazeres imediatos. Dessa forma, você se torna cada vez mais passivo, pode ficar frustrado e deprimido, sem nunca perceber que a fonte disso é a alienação de seu próprio potencial criativo.
Considerando que a escolha de uma forma de trabalho que se alinhe às normas sociais ou às expectativas dos pais acabará levando ao arrependimento e até mesmo à autodestruição, a longo prazo é aconselhável que o puer encontre uma vocação à qual possa dedicar suas energias criativas. Entretanto, em curto prazo, a tarefa mais importante que o puer enfrenta é iniciar-se na vida adulta psicológica e superar sua dependência física e emocional dos pais. Portanto, se o puer achar muito difícil encontrar uma vocação com a qual possa se comprometer, ele deve seguir o conselho de Jung e dedicar suas energias a qualquer forma de trabalho que esteja à sua frente.
Em sua experiência como terapeuta, von Franz observa que esse é o conselho que o puer menos gosta de ouvir. Pois, como explicamos no ensaio anterior desta série, um dos principais problemas que afligem o puer é seu medo do compromisso emocional e sua tendência a se envolver em “trocas rasas e eternas”. Mas como a devoção a uma forma de trabalho é o rito de passagem para a vida adulta psicológica que o puer exige, concluiremos esta série de ensaios com uma citação do mais antigo livro de sabedoria chinês conhecido. Pois, como essa passagem antiga indica, embora o puer tenda a fugir do compromisso, isso é, de fato, o que ele mais precisa para encontrar a liberdade que tanto almeja.
“Possibilidades ilimitadas não são adequadas ao homem; se elas existissem, sua vida apenas se dissolveria no ilimitado. Para se tornar forte, a vida de um homem precisa das limitações ordenadas pelo dever e aceitas voluntariamente. O indivíduo alcança significado como um espírito livre somente ao se cercar dessas limitações e ao determinar por si mesmo qual é o seu dever.”
— O I Ching ou Livro das Mutações, Hexagrama 60
Sinais de que você está em um relacionamento com um homem-criança
Evitação de responsabilidade:
Sinais de evasão de responsabilidade: Um dos principais indicadores de um homem-criança é sua relutância em assumir a responsabilidade por suas ações. Adultos maduros estão dispostos a admitir seus erros e lutar para corrigi-los. Entretanto, um homem-criança tende a desviar a culpa para outros, seja seu chefe, colegas, amigos e parceiros amorosos. Essa fuga da responsabilidade torna difícil lidar com conflitos e desentendimentos no relacionamento.
Busca de intervenção dos pais/sogros/cunhados/amigos em comum:
Um sinal claro de imaturidade emocional é a tendência de recorrer aos pais, sogros ou amigos em comum para obter soluções sempre que surgem desafios. Embora buscar conselhos dos mais experientes seja normal, confiar neles para resolver os problemas da vida é outra questão. Se o seu parceiro recorre constantemente a alguém sempre que surgem dificuldades, isso indica falta de autossuficiência e dependência emocional.
Dependência financeira:
A independência financeira é importante. Ela é uma marca registrada da vida adulta. Espera-se que os adultos administrem suas finanças, incluindo aluguel, contas e despesas diárias. Se o seu parceiro depender de membros da família e até mesmo de você para cobrir essas necessidades básicas, isso levanta preocupações sobre a capacidade dele de lidar com as responsabilidades da vida adulta. A dependência financeira pode prejudicar um relacionamento e dificultar o planejamento de longo prazo.
Habilidades de comunicação:
A comunicação eficaz é a base de relacionamentos saudáveis. Quando as habilidades de comunicação de seu parceiro se assemelham às de uma criança de cinco anos, isso é um sinal de alerta significativo. Respostas imaturas a desentendimentos, como o jogo da culpa ou explosões emocionais, impedem conversas produtivas. Indivíduos maduros priorizam a comunicação aberta, respeitosa e orientada para a solução.
Dependência de outros para necessidades básicas:
Dependência de terceiros: Um homem-criança geralmente depende de outras pessoas para tarefas básicas como cozinhar, limpar e lavar roupa. Embora fatores culturais ou a educação possam influenciar esse comportamento, espera-se que os adultos adquiram essas habilidades essenciais para a vida. A dependência contínua de outras pessoas para as tarefas diárias levanta dúvidas sobre a capacidade do seu parceiro de contribuir igualmente para o relacionamento. Todo adulto deve ter a capacidade de ligar uma máquina de lavar roupas.
Evitar conversas sérias:
Enfrentar o futuro: As conversas sobre o futuro e a direção do relacionamento são essenciais para construir uma base sólida. Um parceiro emocionalmente imaturo pode evitar ou atrapalhar essas conversas com piadas inadequadas ou comportamento evasivo. Embora discutir o futuro possa ser assustador, pessoas maduras entendem a importância de abordar esses tópicos abertamente.
Atitude desrespeitosa e falta de caráter:
A comunicação respeitosa é um aspecto fundamental das interações entre adultos. Comportamentos desrespeitosos, como ridicularização, abusos, mentiras, traições ou críticas, comprometem a qualidade de um relacionamento. É essencial que ambos os parceiros expressem suas opiniões de forma educada e construtiva e respeitem os seus parceiros.
Imaturidade:
A imaturidade se manifesta de várias maneiras, desde fazer piadas inadequadas até se envolver em atividades infantis. Parceiros que apresentam esses comportamentos podem ter dificuldades para se adaptar às responsabilidades e expectativas dos adultos. Compreender o nível de maturidade do parceiro é essencial para manter um relacionamento equilibrado.
Falta de maturidade emocional:
Maturidade emocional: A maturidade emocional é um componente vital de relacionamentos saudáveis. Pessoas que têm dificuldade para regular suas emoções ou ter empatia podem achar difícil lidar com as complexidades dos relacionamentos adultos. A maturidade emocional geralmente se desenvolve com a idade e a experiência.
Vício em entretenimento/fuga da realidade:
Embora seja normal gostar de entretenimento, a dependência excessiva de atividades como videogames, TV, viagens ou encontros com os amigos prejudica o crescimento pessoal e os relacionamentos. Adultos devem buscar uma vida equilibrada que englobe várias facetas além do entretenimento.
Necessidade constante de validação:
Uma necessidade insaciável de validação pode indicar imaturidade emocional. Indivíduos maduros têm autoconfiança e segurança em si mesmos, enquanto homens-criança geralmente dependem de aprovação externa para se sentirem valorizados. Esse desejo constante de atenção pode levar a desafios no relacionamento.
Reconhecer os sinais de alerta associados a um relacionamento com um homem-criança é o primeiro passo para tomar decisões concretas sobre sua parceria.
Embora algumas pessoas possam apresentar alguns desses sinais sem necessariamente serem homens-criança, um padrão de vários indicadores deve levar a uma avaliação séria do relacionamento. Se seu parceiro demonstrar disposição para crescer e amadurecer, pode haver esperança para o relacionamento. No entanto, se ele continuar resistente à mudança, talvez seja hora de reavaliar seu futuro juntos.
Muito esclarecedor! Fiquei interessada em saber pq essa lógica não se aplica às meninas (mulheres-criança).. ou se aplica tb?
Perfeito, Joaquim 🤙🏾👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾
Comecei uma pesquisa pra criar um vídeo em meu canal do YouTube e depois de 5 dias chego ao fim da linha. Obrigado por me ajudar a enxergar o quão “ Filho eterno “ eu ainda sou. Não foi nada facial terminar de ler estes ensaios, são verdades duras demais para ser em engolidas, porem necessarias para à evolucao. Um abraço e mais uma vez MUITO OBRIGADO.
“ Quando você olha para o abismo, o abismo tambem olha pra você “